Análise da ilegalidade da cláusula “Take or Pay” no contexto do direito brasileiro.
Wander Rodrigues Barbosa
Advogado, especialista em Direito Empresarial
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a legalidade da cláusula “Take or Pay” no contexto do direito brasileiro. Comumente encontrada em contratos de longo prazo, especialmente no setor de energia e gás natural, essa cláusula estabelece a obrigação do comprador de pagar por um volume mínimo de produto, independentemente de seu uso. Argumenta-se que tal disposição, quando aplicada de forma desproporcional, pode ser interpretada como uma penalidade disfarçada, afrontando princípios contratuais fundamentais, como o equilíbrio econômico-financeiro e a função social do contrato. A análise considera dispositivos do Código Civil, jurisprudência e a doutrina pertinentes, concluindo pela ilegalidade da cláusula em determinados contextos.
Palavras-chave: Cláusula Take or Pay. Contratos de fornecimento. Penalidade. Equilíbrio econômico-financeiro. Direito contratual.
1 INTRODUÇÃO
A cláusula “Take or Pay” é frequentemente utilizada em contratos de longo prazo, notadamente no setor de fornecimento de gás natural e energia elétrica. Trata-se de um dispositivo contratual que obriga o comprador a pagar por uma quantidade mínima de bens ou serviços, ainda que não os utilize. A justificativa para a sua adoção é garantir um fluxo de caixa previsível ao fornecedor, possibilitando a realização de investimentos necessários ao fornecimento. Contudo, o uso indiscriminado dessa cláusula levanta questionamentos sobre sua compatibilidade com os princípios que regem o direito contratual brasileiro.
Este artigo pretende analisar a legalidade da cláusula “Take or Pay”, considerando os dispositivos do Código Civil, especialmente os artigos 408 a 416, que tratam das cláusulas penais. O estudo aborda a jurisprudência nacional e as implicações econômicas e jurídicas da cláusula, argumentando que, em certos contextos, sua aplicação pode ser considerada abusiva e ilegal.
2 NATUREZA JURÍDICA DA CLÁUSULA “TAKE OR PAY”
A cláusula “Take or Pay” se caracteriza por ser uma obrigação alternativa, na qual o comprador deve optar entre utilizar um serviço ou pagar pela sua mera disponibilidade. Não obstante, quando aplicada sem uma justificativa clara de proporcionalidade, essa cláusula assemelha-se a uma penalidade indireta, subvertendo a essência do contrato e impondo ao comprador uma obrigação onerosa. Segundo o entendimento majoritário da doutrina, conforme apresentado por Monteiro (2019), ela não é propriamente uma cláusula penal compensatória, mas, muitas vezes, acaba funcionando como uma sanção, ao transferir todo o risco econômico da operação ao comprador.
3 APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O Código Civil brasileiro estabelece em seus artigos 408 a 416 o regime jurídico das cláusulas penais, permitindo ao juiz reduzir o valor da penalidade quando esta for excessivamente onerosa (art. 413). Assim, a cláusula “Take or Pay”, ao impor obrigações desproporcionais, deve ser passível de moderação judicial, o que decorre da interpretação sistemática do ordenamento jurídico. A possibilidade de revisão judicial busca garantir a preservação do equilíbrio contratual, elemento fundamental para a validade dos contratos (VENOSA, 2020).
A ausência de uma regulação específica da cláusula “Take or Pay” no Brasil cria um vácuo normativo que pode levar à sua aplicação inadequada, em desacordo com o princípio da função social do contrato, previsto no art. 421 do Código Civil. Esse princípio impõe que as obrigações contratuais não devem desconsiderar os impactos econômicos e sociais decorrentes da contratação, especialmente quando envolvem disparidade de poder econômico entre as partes.
4 JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E A INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS “TAKE OR PAY”
A jurisprudência brasileira tem enfrentado o tema com uma certa divergência. Enquanto alguns julgados reconhecem a cláusula “Take or Pay” como válida, outros a têm equiparado a uma multa compensatória, sujeita à moderação judicial. Decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) indicam que a cláusula deve ser vista com cautela, avaliando-se, caso a caso, se ela representa uma contraprestação legítima ou uma penalidade indireta.
Em acórdão da 35ª Câmara de Direito Privado do TJSP (2012), por exemplo, reconheceu-se que a cláusula de consumo mínimo não configurava multa, mas sim uma compensação pela disponibilidade do produto. Todavia, outros julgados, como o proferido pela 28ª Câmara de Direito Privado do TJSP (2018), consideraram a cláusula equivalente a uma multa contratual, sujeitando-a aos limites impostos pelo art. 413 do Código Civil.
5 VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA PRIVADA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
A imposição unilateral de riscos ao comprador por meio da cláusula “Take or Pay” também pode ser vista como uma violação ao princípio da autonomia privada, que deve ser exercida de forma razoável. A liberdade contratual não é absoluta e deve ser interpretada à luz da função social do contrato. Em contratos de adesão ou com consumidores, como os regidos pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), a cláusula pode ser ainda mais restritiva, sendo considerada abusiva caso imponha desvantagem excessiva ao consumidor.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que cláusulas que implicam desvantagens excessivas a uma das partes podem ser anuladas ou modificadas para adequar o contrato ao equilíbrio necessário. A função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do CC) impõem que os contratos sejam justos e proporcionais, de forma a não desvirtuar sua função econômica.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da cláusula “Take or Pay” sob a ótica do direito brasileiro revela que, embora sua aplicação seja comum em setores de infraestrutura, ela deve respeitar os princípios de proporcionalidade e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. A caracterização dessa cláusula como uma obrigação alternativa não exclui a possibilidade de moderação judicial, sobretudo quando ela se traduz em um ônus desproporcional ao comprador, configurando uma penalidade disfarçada.
Nesse sentido, defende-se a ilegalidade da cláusula “Take or Pay” quando ela impõe obrigações que violam os princípios da função social do contrato e da autonomia privada, sendo passível de revisão judicial com base nos artigos 408 a 416 do Código Civil. A aplicação indiscriminada desse dispositivo, sem considerar as peculiaridades do caso concreto, pode prejudicar o equilíbrio contratual e gerar insegurança jurídica, devendo ser analisada com cautela pelos tribunais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 nov. 2024.
MONTEIRO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Editora Atlas, 2019.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Contratos em Espécie. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.