A Matriz do Problema: Proteção Mutualista versus Seguro Mercantil.
A discussão acerca da caracterização das atividades das associações de proteção veicular como operações de seguro tem ganhado relevância no âmbito do Direito Civil e Penal. Decisões recentes de tribunais brasileiros, como no caso analisado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (RSE 0007885-87.2016.4.01.3800), demonstram uma evolução interpretativa em relação à legalidade dessas atividades e à aplicação normativa pertinente.
As associações de proteção veicular surgem como alternativa para consumidores que buscam reduzir custos em comparação ao seguro tradicional. Estas organizações oferecem um sistema de rateio de prejuízos entre os associados, que dividem os custos de danos ocorridos com seus bens. Diferentemente das seguradoras, tais associações não possuem fins lucrativos e sua gestão é feita de forma cooperativa pelos próprios membros.
O artigo 757 do Código Civil define contrato de seguro como aquele em que o segurador se obriga, mediante o pagamento de prêmio, a garantir interesse do segurado contra riscos predeterminados. As associações mutualistas, por sua vez, baseiam-se no mutualismo, com divisão de despesas após a ocorrência de sinistros, sem prêmio fixo ou reserva obrigatória, o que afasta sua equivalência ao seguro mercantil.
A Jurisprudência do TRF-1: Limites da Atividade Mutualista
No caso mencionado, o TRF-1 reafirmou a legitimidade das associações de proteção veicular desde que operem estritamente dentro do escopo mutualista. A decisão destacou que tais associações não infringem a legislação ao promoverem a divisão de prejuízos de forma cooperativa, com base no disposto no artigo 5º, incisos XVII e XVIII da Constituição Federal, que garantem a liberdade de associação para fins lícitos.
Entretanto, a atuação dessas associações deve evitar a configuração de operações tipicamente securitárias, como a comercialização de contratos com prêmios fixos ou a promessa de cobertura total contra riscos predeterminados, o que demandaria autorização da SUSEP, conforme o artigo 1º, parágrafo único, inciso I da Lei 7.492/1986.
Decisões Relacionadas e Fundamentação Legal
Outros tribunais têm seguido entendimento semelhante. A 6ª Turma do TRF-1, ao analisar caso análogo (AC 0018423-62.2013.4.01.3500/GO), concluiu que o modelo mutualista não configura seguro empresarial devido à ausência de intenção lucrativa, prêmio fixo e reserva atuarial obrigatória. O Enunciado 185 da III Jornada de Direito Civil também contribui ao reforçar que normas previdenciárias e securitárias não impedem a formação de grupos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão.
Essa linha de raciocínio está fundamentada nos princípios constitucionais e nas disposições do Código Civil, como os artigos 53 e 54, que regulam as associações sem fins lucrativos. Ademais, jurisprudências como a da Apelação 0000920-87.2011.8.26.0648 (TJSP) reiteram a validade do mutualismo em contrapartida ao seguro tradicional.
Reflexões e Impactos no Mercado
A ausência de regulação específica para as associações mutualistas gera insegurança jurídica, tanto para os associados quanto para as próprias associações. A regulamentação proposta pelo Projeto de Lei 356/2012, que visa a adequar essas entidades ao ordenamento jurídico, é um passo relevante para dirimir ambiguidades e fortalecer a segurança no setor.
No âmbito penal, a correta tipificação das atividades é fundamental para evitar a judicialização desnecessária e garantir a livre iniciativa. As associações, ao respeitarem os limites legais, podem continuar exercendo seu papel social sem infringir os direitos das seguradoras ou comprometer a ordem econômica.
Conclusão
A jurisprudência tem desempenhado um papel crucial na definição dos contornos legais das associações de proteção veicular. O respeito ao mutualismo e à autogestão, combinado com a observância aos limites estabelecidos pela legislação vigente, assegura a legitimidade dessas organizações no sistema jurídico brasileiro. O debate jurídico e legislativo continua sendo essencial para harmonizar as relações entre os diversos atores envolvidos e garantir a proteção efetiva dos direitos dos consumidores e associados.
Fonte: Tribunal Regional Federal da 1ª Região TRF-1 -RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (RSE): RSE0007885-87.2016.4.01.3800.